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Realmente com-paixão

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Realmente com-paixão
Lama Jigme Lhawang

Recentemente passei os olhos em uma citação de um ser humano que considero uma mestra da vida e que, apesar de não conhecer pessoalmente, acompanha e impulsiona meu desenvolvimento humano através de suas palavras- a Monja Pema Chodron.

Nesta citação, Pema Chodron fala sobre compaixão de uma forma que faz sentido, toca e ressoa meu coração:

“Compaixão não é um relacionamento entre um curador e um ferido. É uma relação entre iguais. Somente quando conhecemos bem a nossa própria escuridão é que poderemos estar presentes com a escuridão do outro. A compaixão torna-se real quando reconhecemos a humanidade que compartilhamos.”

Pensei, por que meu coração vibrou com estas palavras? E a resposta que veio foi porque elas falam sobre meu lado humano, porque descrevem de forma simples e direta a minha humanidade – a confusão, os medos, esperanças e frustrações pelas quais meu coração atravessou e atravessa, muitas vezes sem ninguém, além de mim mesmo, ter conhecimento. Olho para um lado, para o outro, atrás e a frente. Sinto meu coração mais sensível, percebo que outros corações ao meu redor sabem exatamente do que estou falando. Há algo em comum entre nós, sinto-me expandindo e chegando no outro, partilhando, co-existindo, me comunicando. Sinto compaixão.

O termo compaixão deriva de duas palavras latinas: ‘cum’ e ‘patire’. Cum significa ‘com’, o que me faz pensar em uma ‘relação’, ‘estar junto’, ‘co-existir’ e patire significa ‘sofrimento’, ‘mal-estar’ etc, uma palavra da qual eu conheço bem o sabor. Em sânscrito esta palavra é karuna. Na literatura mahayana, especificamente no Sutra Akṣayamatinirdeśa, karuna é descrito como “ação”, o que concorda com sua raíz sânscrita kṛ, a mesma raíz da palavra karma, que significa “atitude ou ação”, ou seja, uma ação de interromper ou eliminar o mal-estar de outrem. Portanto, a compaixão no budismo não é uma experiência passiva, mas um ato compassivo. Em tibetano, a palavra sânscrita karuna foi traduzida como “Nying-djê”.

A palavra tibetana Nying-djê diz respeito a um ‘coração’ (nying) ‘elevado’ (djê). Coração aqui diz respeito a ‘conexão’, a energia que nos faz nascer na relação com outrem. Porém, nying-djê não é qualquer conexão, não é qualquer sentimento ou vibração de energia. Ela é ‘elevada’ devido a sua consciência sobre a natureza de sua relação, surge a partir da elevada compreensão sobre a conexão que se estabeleceu. No Tantra budista, ou em outras palavras, no continuum natural da mente, nying representa o espaço amorosamente sábio de nossa natureza que se revela através de djê, seu movimento compassivamente habilidoso – a coexistência entre o espaço amorosamente ciente e o movimento de sua energia compassivamente interdependente. Esta energia espaçosa, hábil, sábia e paz-ciente é ativa, se movimenta na direção dos seres, nasce a partir desta conexão, compreende esta relação de forma toda abrangente e aspira que todos os seres estejam livres de qualquer mal-estar e de todas as suas causas.

S.S. Gyalwang Drukpa, meu mestre do coração, diz que não há como desassociar o amor da compaixão, que ambos são concomitantes. Ele explica que a compaixão é o espaço todo acolhedor que naturalmente abraça e compreende o sofrimento dos seres e o amor é a energia consciente que espontaneamente se move na direção de seu bem-estar e equilíbrio.

Portanto, a compaixão de acordo com o Dharma do Buddha é o conhecimento da própria natureza coexistente entre tudo e todos, é o conhecimento do ser que só existe na relação com seu universo, que não é encontrado fora desta ligação, que somente ‘é’ em sua coexistência, que nunca ‘é’ separado, desconectado, que é vazio de uma existência per se, porém, surge milagrosamente com o outro.

Na via dos heróicos guerreiros do despertar, os chamados boddhisatvas, sempre me chamou a atenção o fato de eles regozijarem ao encontrar dificuldades e atravessarem pelos mais variados sofrimentos. Porém, sofrer consciente da natureza deste sofrimento é despertar um coração elevado – nying-djê -, é compartilhar a conexão visceral com todos os seres – com paixão -, é nos movimentarmos e agirmos a partir desta conexão consciente que tudo abarca – karuna. Não podemos despertar verdadeira compaixão por aquilo que não conhecemos, que não saboreamos, que não temos experiência direta. Ter realmente compaixão é desfrutar e profundamente entender a igual humanidade que todos compartilhamos e reconhecer sua verdadeira natureza que vai muito além das concepções limitadas que temos sobre si e sobre os outros. É saborear a vida como ela realmente é, de forma plena, livre de pré-conceitos, medos e expectativas. É reconhecer, em primeira pessoa, o movimento natural e completamente espontâneo de ser, estar e viver.

A energia primordial que nos liga uns aos outros é o coração mais elevado que podemos encontrar no centro de nosso ser, que se expande e se inter-liga com o universo inteiro. A esta compaixão livre de referenciais, presto homenagem!

Partilho com paixão das palavras provindas do coração de um dos maiores mestres budistas da Índia, Shantideva, em sua obra “Introdução a Ação dos Guerreiros do Despertar”:

“Para todos aqueles que padecem no mundo, até que todas as suas doenças tenham sido curadas, possa eu me tornar o médico, o enfermeiro e o próprio remédio.

Fazendo jorrar uma torrente de comida e bebida possa eu debelar os males da fome e da sede; e nas eras marcadas pela escassez e carestia, possa eu aparecer como bebida e alimento.

Para os seres sencientes, pobres e desprovidos, possa eu me tornar um tesouro inesgotável e dispor à sua frente, logo ao seu alcance, uma fonte abundante de tudo que possam precisar.

Meu corpo, juntamente com todos os seus bens, e todos os méritos que adquiri e que irei adquirir, ofereço todos, sem nada conservar, para propiciar o bem-estar de todos os seres.

A transcendência de todo o pesar, o nirvana, o objeto de meu empenho, é alcançado dando-se tudo. Portanto, todas as coisas devem ser abandonadas e é melhor que sejam todas dadas aos outros.

Este meu corpo entrego ao capricho de todos os seres. Deixem que eles o matem, surrem, ultrajem, e dele façam tudo o que desejarem. E ainda que o tratem como um joguete ou façam dele alvo de todo o ridículo, meu corpo foi a eles entregue – não há porque, agora, com ele eu me importar. Assim, deixem que os seres façam comigo tudo o que não lhes cause dano, e, sempre que os seus olhos pousarem sobre mim, possa isso nunca deixar de lhes trazer benefícios.

Se aqueles que me virem abrigarem um pensamento de raiva ou devoção, possa esse estado servir de causa para a realização de seu bem e de seus desejos.

Todos aqueles que me insultarem ou fizerem qualquer outro mal, mesmo os que me acusarem ou caluniarem, possam eles alcançar a bem-aventurança do despertar.

Possa eu ser um protetor para os que vivem desamparados, um guia para os viajantes que seguem pelas estradas; para os que desejam cruzar para a outra margem, possa eu ser uma balsa, um barco, uma ponte. Possa eu ser uma ilha para aqueles que anseiam por terra firme, uma lamparina para aqueles que desejam a luz, para aqueles que precisam de descanso, um leito; para todos os que necessitam de serviço, possa eu ser seu servo.”*

Lama Jigme Lhawang,
Recife, 26 de junho de 2015.

* Texto de Shantideva adaptado a partir da tradução original em língua portuguesa de Manoel Vidal.


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